Duas palavras nesse título, masculinidade e cuidado, que quando andam juntas nos causam a mesma sensação desse vídeo que viralizou recentemente. Tem tudo pra ser um desastre, mas é possível nutrir ainda alguma esperança.
Aliás, tudo que tenho para falar hoje tem a ver com as sensações desse vídeo. O medo instantâneo que tive de ver até o final, já imaginando que seria uma cena que me causaria verdadeiro pavor. Seguido da grata surpresa e da explosão de alívio, espanto e alegria ao constatar que é possível um movimento contrário. Contaminar a masculinidade com sentimentos positivos, alegres, fofos e exuberantes.
Esses todos que um boçal, nesse mesmo segundo, deve tá ensinando a uma criança do sexo masculino que são coisas de “mulherzinha” ou de “viadinho”. São mesmo. Que pelo menos a nós e a toda comunidade queer ainda reste fé na humanidade. Mas nesse texto, já aviso logo, vou me referir prioritariamente ao universo masculino cis e heterossexual.
Das urgências imperiosas na agenda feminista, essa é uma das mais difíceis: criarmos novos padrões de masculinidade, onde a violência não seja a resposta óbvia para quase tudo. Sejamos justas, o mundo caminha para o contrário desse objetivo.
A masculinidade parece forjada em alguns pilares de identidade, como a autonomia individualista, a retenção emocional e a misoginia. Vivemos em um mundo produtivo de reforço dessas características. Inclusive, é notório que mulheres que assumem posições de liderança precisam, de alguma forma, corresponder também a esses pilares.
Mas essa newsletter é o lugar de chispar as dicotomias chapadas. E eu não quero em pleno dia dos pais reforçar o óbvio do abandono paterno. De alguma forma, tenho nutrido o desejo pessoal e político de preencher esse abandono com o exercício de dar significado verdadeiro à segunda palavra. Paterno em oposição a paternalista, paterno em guerra com o patriarcado. Paterno naquilo que está oco e em falta em uma masculinidade que fere meninos cada vez mais jovens e valorizam homens covardes. Mas como imaginar sem referências?
Sim, há muito conteúdo parental importante e disponível para quem tem o objetivo de repensar a parentalidade como um todo: menos autoritária, mais autônoma, menos machista, com pais presentes e afetuosos. Mas falo de um referencial mais profundo, um referencial de cultura e sociedade.
Eu refuto sempre essa ideia de desconstrução. Ela é completamente absurda da perspectiva cultural. Não se desconstrói um sujeito culturalizado, não se zera seu conjunto de símbolos e significados comuns, através de uma nova narrativa. Isso para mim é outra falácia neoliberal para responder a qualquer crítica social como um comportamento de marca. Faz aí seu rebranding que tá repaginado, novinho em folha e pode continuar vivendo entre as feministas. Eu acho importante refletirmos individualmente sobre as desigualdades e tomarmos decisões mais saudáveis, mas é preciso existir brechas para uma nova toada.
O ponto em que quero chegar é: me importa muito que a economia do cuidado seja uma responsabilidade do Estado, porque ela é essencial para a sobrevivência das mulheres em um mundo produtivo extremamente predatório. Mas me interessa também que o cuidado seja pensado como um valor humano importante. Um valor que desacelere a humanidade do produtivismo, do esquema destruidor e utilitarista que temos com a natureza e com tudo ao nosso redor. Que seja um valor e uma qualidade dentro de um sistema comum de convivência humana.
Que além da divisão igualitária do trabalho doméstico, os homens possam desfrutar do valor do diálogo, da paciência e da resiliência, da abdicação de seu tempo e disponibilidade para melhorar a vida de outro ser humano. Porque pode parecer que essas características não sejam positivas, já que elas são um fardo de responsabilidade exclusivo das mulheres. Mas elas são.
Não tem nada mais estarrecedor para mim do que a violência masculina. O modo como o gênero é o recorte predominante em relação às guerras e em relação a mortes violentas, mesmo entre homens e ainda mais contra mulheres. Ou como a cultura do estupro é indispensável para manutenção da dominância patriarcal, tanto dentro de casa, quanto como modo de sujeição de uma nação.
Da mesma maneira que me deixa perplexa a forma brutal como as emoções masculinas são trituradas na infância para reforçar essa cultura. A estima maltratada de qualquer criança que se aproxime do feminino, da delicadeza e do cuidado. E a permissividade com que o sexo utilitário e agressivo é inserido no ambiente masculino. Onde a única fonte de prazer e deleite parece ser física e individual. Truculenta e explosiva, jamais contemplativa, sutil ou artística.
Eu não acho que os homens são todos iguais, tampouco que as mulheres disponham das mesmas características que atribuí aqui ao universo feminino. Mas as imposições do gênero não fomos nós que criamos e só as enumero certa de que, desse outro lado da tela, você conhece os mesmos estereótipos que eu. E os estereótipos não se rompem com facilidade, eles se moldam bem até mesmo a novas roupagens. Estão dentro de algumas verdades e valores comuns. Esse é o verdadeiro poder da cultura, a partilha de um invisível sistema de valores e crenças, mesmo entre divergentes.
Por isso, é preciso mais que valorizar a presença ativa de um pai, mais que forjar narrativas, é preciso vivenciar comunitariamente a afetividade paterna. O paterno como o vínculo social que a maternidade é. Inclusive a paternidade de quem não é pai, mas é avô, é padrinho, é amigo. O homem com sua feminilidade aflorada, com suas emoções reconhecidas e formuladas a ensinar crianças a se expressarem, com sua sensibilidade e sua intuição, com seu olhar sobre um futuro que não é de aniquilamento ou destruição. O homem que preserva, cuida, ama, que flui numa dança, que baila num sexo, que valoriza a bondade, a arte, a vida em comum e o outro.
A gente não preenche vazio com oposição. Não é de um homem feminino ou maternal que estamos falando. Não é de responsabilidades divididas, nem de famílias que vivem muito bem, obrigada sem a figura masculina. É sobre a importância de um sentimento paterno fundante na masculinidade. É de homens com vontade de compartilhar com as mulheres a importância da continuidade. Do cuidado com a vida, com as formas de vida, com a casa e os ambientes, com as crianças e os idosos, com os doentes, com tudo aquilo que não está na mesa dos seus interesses, mas da coletividade. É a cura para o abandono que eles mesmos sofreram em sua própria infância.
Rezo para que a paternidade que estamos reformulando chegue aí, nessa referência. Ás vezes, quando paro para pensar, parece inalcançável. Mas aí me vem de novo a alegria do vídeo. Daquele pulinho saltitante e infantil que nos convida a abrir caminhos.
Como sempre, fé nas crianças!
Perfeito!!!